quarta-feira, 9 de dezembro de 2009






Harry Potter e O Enigma do Príncipe (Harry Potter and The Half-Blood Prince, Inglaterra/EUA, 2009).
De: David Yates.
Com: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Michael Ganbon, Tom Felton, Bonnie Wright, Jim Broadbent, Alan Rickman, Jessie Cave, Evanna Lynch, Helena Bonham-Carter.
153 minutos.
Se vocês me permitirem o intrometimento e talvez até a repetição, adoraria poder lhes contar uma pequena e simplória história sobre o nascimento de um fã. O ano era 2002, e este escriba que voz fala ainda não havia descoberto nem sequer todas as belezas da sétima arte, que dirá o maravilhoso mundo da informação virtual. Quando aquele garoto entrou no cinema em 22 de Novembro para ver Harry Potter a Câmara Secreta, porém, não podia imaginar que daquele dia nasceria uma paixão que me levaria, sem sombra de dúvida, até onde estou hoje. O segundo filme da série, mais uma vez dirigido por Chris Columbus (Esqueceram de Mim), era uma aventura de andamento próprio, único e não menos do que encantador, carregada por uma trama de suspense apoiada por evidências sutis, apresentadas de forma quase ao acaso. Embora eu com certeza não tenha notado na época, era quase como assistir a uma adaptação de Agatha Christie com uma boa dose a mais de diversão, pirotecnia hollywoodiana e, a longo prazo, personagens que de uma forma ou de outra marcariam para sempre a memória e o coração de muita gente. A partir do momento que eu saí daquele cinema, havia me tornado muita coisa que não era quando entrei. Era um cinéfilo agora, era mais um entre muitos fãs do maior fenômeno literário jovem do século e me tornaria também um leitor por prazer, como imagino que muitos mais se tornaram após a intervenção da britânica Rowling, autora desses livros que misturavam aventura, magia literal e mistério dos mais envolventes para produzir, como em uma produtiva aula de poções a cada página, a pura essência do encantamento. Rowling trouxe a sutileza de volta a voga na literatura, e pelo menos nas duas primeiras investidas cinematográficas da sua criação, parecia que faria o mesmo com o cinema. É claro, a partir daquele momento uma sessão de qualquer Harry Potter para mim e penso que para muitos outros, era uma experiência dividida entre a visão de cinéfilo que podia entender certas escolhas de roteiro e direção, e a de fã, que era capaz de gritar de revolta ao ver sua obra preferida mutilada. Eu sei que parece egoísta, mas quem é fã deve saber bem do que eu estou falando, porque para começar quem verdadeiramente ama esse trio de ouro que compõe o trivial de qualquer aventura da série, não há filme perfeito e não há adaptação que não seja passível de uma ou outra correção. É em momentos como esses, sentado confortavelmente em uma sala de cinema sem conseguir evitar de ver cada cena de minha série preferida com uma lente de aumento, que renovam a fé de que a imaginação humana é mesmo algo único e misterioso da forma como deveria ser. Na tela nada ou quase nada acontece da forma como nossa mente projetou ao ler as frases do livro, e de alguma forma impossível de evitar aquela nova visão, a do diretor ou do roteirista, cai como uma luva ligeiramente apertada ou folgada demais. Por melhor que seja a cena, e somos capazes de notar isso apesar dos que dizem os críticos mais entendidos, não é da forma como queríamos, e nunca será. O filme é produto conjunto de mentes e pensamentos que não são os nossos, e quando nossa imaginação projeta algo que marca tão profundamente em nossa memória e sentimento, não há como não sentir uma espécie de revolta, mesmo que culpada. Sexta e antepenúltima aventura em terras cinematográficas dos bruxos, Harry Potter e o Enigma do Príncipe soa como um produto de cinema válido, quase notável, mas é simplesmente impossível de digerir de forma completa para quem foi apresentado ao tratamento único da autora dos livros a um tempo de névoa e guerra que marca o mundo dos bruxos e dos humanos “normais” na sexta aventura em papel. A sutileza é jogada para o alto em favor da brutalidade, e talvez seja isso mesmo que sirva melhor ao cinema do novo século, mas não poderia ter havido pecado maior para um fã do que esse.
De fato, é quase admirável as mudanças e esforços empreendidos pelos produtores para tentar recuperar a confiança dos fãs de longa data desses personagens, ainda mais a luz da chuva de críticas que desceu sobre Michael Goldenberg (Peter Pan) quando o inglês estreou na batuta do roteiro da série em A Ordem da Fênix já deixando de fora diálogos considerados sagrados pelos fãs e de fato essenciais para o desenvolvimento de uma então subtrama que se tornaria mais do que essencial no decorrer da aventura dos livros posteriores. Para o novo filme a Warner tornou a chamar Steve Kloves, o inconstante responsável pelos quatro filmes anteriores e pelo aplaudido texto da dramédia Garotos Incríveis, dessa vez na adaptação de uma trama extrema e perigosamente pessoal para os fãs, ansiosos para assistir o já noticiado primeiro namoro de seu herói e as complicações nos romances entre os personagens que todos tanto amam. Eliminado o elemento surpresa que impregna todo o sexto livro da série nas palavras sempre acertadas de Rowling, a missão de Kloves era ainda mais complicada ao corresponder as expectativas de pelo menos duas platéias. Uma, fanática pelos livros que queria fidelidade e sentir aquele arrepio correr pela espinha nos momentos mais grandiosos, especialmente no clímax da trama, o mais emocionante da série até então, e outra, de críticos empolgados com todo o clima político do quinto filme, que queriam mesmo é ver a guerra entre o lado negro e o lado iluminado da magia explodir em tela antes da hora. O resultado de tanta pressão, ainda mais ao lado da expectativa acumulada devido a polêmica decisão do estúdio em adiar em quase um ano a estréia do novo filme, é um texto que não agrada integralmente a nenhum dos lados, mas tem seus acertos e sua soluções inteligentes. De forma muito mais notável no começo do filme, Kloves consegue montar a guerra já esperada sem com isso irritar os fãs, gerando interesse em ambos os lados da batalha, resumidos com sabedoria em uma série de cenas rápidas e impressionantes. Porém, quando decide deixar para trás certos momentos decisivos para o desenvolvimento da personalidade de alguns personagens cujos traços seriam reforçados no sétimo livro, já anunciadamente dividido em dois filmes a serem lançados em 2010 e 2011, Kloves erra e produz cenas que não marcam tanto quanto as descritas pelas palavras da autora. No clímax, aliás, sem querer estragar um par de surpresas, é mais do que oportuno observar que o roteiro corta pelo menos duas das frases mais marcantes de toda a série em favor de um par de efeitos especiais impressionantes que, apesar da maestria técnica da super-produção, não conseguem emocionar e envolver da forma como fariam estudos tão intensos de dois personagens que se tornarão elementos-chave na trama derradeira. Mais uma vez a trama nos leva de volta a Escola de Magia de Hogwarts, não antes de deixar bem claro que o mundo dos humanos “normais” também não está imune a guerra que começa a se desenrolar nos domínios bruxos. Nesse clima de paranóia e opressão somos levados de novo ao mundo de magia que a série sempre ofereceu ao espectador, dessa vez com um clima de suspense mais acentuado e focado no até então apenas irritante Draco Malfoy (Tom Felton), que finalmente recebe sua Marca Negra e uma missão perigosa para desempenhar a mando do bruxo das trevas mais poderoso de todos os tempos. Enquanto isso, temos Rony Weasley (Rupert Grint) ganhando seu lugar na equipe de quadribol e arranjando uma namorada que rende momentos bem engraçados, Lilá Brown (Jessie Cave). É curioso que, para o filme que antecede uma trama tão focada em seu principal personagem quanto Relíquias da Morte, essa sexta aventura tem poucas cenas de fato marcantes para Harry, mais uma vez interpretado por Daniel Radcliffe. É bem verdade que temos a primeira namorada do herói, Gina Weasley (Bonnie Wright), mas a forma como o roteiro trata o romance é tão menos focada que a do livro que de envolvimento de verdade temos muito pouco enquanto o passado do vilão Lord Voldemort nos é revelado de forma fascinante por meio de lembranças bem mixadas ao restante da trama, nas aulas particulares do protagonista do o diretor Dumbledore (Michael Ganbon), mais sábio e importante do que nunca no contexto da trama.
Com tantos erros e acertos pesados em uma trama que deveria e termina sendo quase espontaneamente tão marcante, é fato que não raro o elenco de peso reunido pela série precisa segurar as pontas das cenas mais indecisas. Da parte jovem da lista temos um Daniel Radcliffe um tanto perdido em meio a um foco tão fraco no personagem que interpreta, tentando segurar as pontas e conseguindo dar a Harry a sensação de deriva e confusão que impregna todos os pensamentos do protagonista no livro. Se Radcliffe se mostra desenvolto mesmo em meio a alguns erros, seu par não pode ser parabenizado da mesma forma. Pela primeira vez mais destacada na pele de Gina Weasley, a graciosa Bonnie Wright não consegue evidenciar toda a personalidade que marcou a personagem nos livros e acaba criando mais um par quase inexpressivo para um protagonista que, sem ter no que se apoiar, acaba soltado ao vento em algumas cenas. Ao menos temos um ponto a favor das garotas com Emma Watson, que dá seu maior show na série até agora tendo que lidar com as primeiras evidências mais claras de uma paixão pelo amigo Rony e injetando bastante emoção a pelo menos um trio de cenas que poderiam passar quase despercebidas. No final, numa das mais bonitas e marcantes cenas criadas com precisão cirúrgica por Kloves, a câmera em um close na interpretação de Emma resume tudo aquilo que cada espectador deve estar sentindo naquele momento. Quem também sai ganhando é Evanna Lynch, mais uma vez a encarnação quase literal da excentricidade de Luna Lovegood e uma das mais carismáticas e marcantes figuras do filme, ainda mais quando salva o herói de uma situação complicada no início e o acompanha em um dos momentos mais engraçados do filme, quase na metade da projeção. Luna e Evanna são a dupla perfeita que, não raro, concedem um pouco de alma e ingenuidade a uma trama de tamanho perigo, suspense e expectativa. Isso ao lado de Rupert Grint, carismático da cabeça aos pés ao encarar algumas das mais marcantes e divertidas cenas do filme, seja lidando com não uma, mas duas tramas de romance, seja segurando bem as pontas nos momentos cômicos e dramáticos de Rony, que cresce muito ao olho do espectador no novo filme. Aliás, no extremo oposto da trama mas também num momento de puro crescimento está Tom Felton e seu juvenil vilão Draco Malfoy, que passa sem escalas de adolescente irritante para ameaça mais do que sólida e se torna um personagem de complexidade impressionante na atuação que não raro é a que mais arranca sentimentos de verdade do espectador comum. Isso porque, é claro, há todo um novo sabor no Dumbledore de Michael Ganbon para quem conhece a importância do personagem na série e na trama, e o ator não decepciona, finalmente encarnando de verdade o diretor da escola mais famosa do mundo da magia e se tornando o elo emocional mais forte com o espectador. Mais por causa dele do que pelo roteiro ou pela direção, o final é aterrador, triste e faz a realidade cair como uma pedra na mente e no sentimento do espectador. Guerra é morte, e se há uma encarnação para ela em Enigma do Príncipe essa encarnação é Belatriz Lestrange, levada com sabedoria por Helena Bonham-Carter em uma interpretação acertadíssima que vai além da loucura demonstrada nas poucas cenas do quinto filme para se tornar o puro símbolo da maldade que a bruxa má é nos livros. De novidade mesmo só o Horácio Slughorn de Jim Boradbent (Moulin Rouge!), dono de pelo menos uma cena impressionante, mas que não cumpre a promessa de ladrão de cenas que carregava das palavras de Rowling e dos produtores do filme. Quem rouba o show mesmo é Alan Rickman, mais uma vez a encarnação literal e magnífica de Snape e a única razão pela qual o corte de uma das frases mais marcantes do personagem (“Não me chame de covarde!”) não fazer assim tanta falta. Atuação, aliás, que só deixa mais forte o trabalho sólido de câmera empreendido por David Yates, o homem por trás do visual mais sombrio e realista que a série já teve, que já assinou contrato para as duas partes derradeiras da série. Ele sabe quando ser detalhista e filma as melhores e piores cenas do roteiro de Kloves com sabedoria e clima variável, num trabalho daqueles de se admirar pela adequação de gênero. Em meio a ângulos acertados, palavras que nem sempre soam como deveriam e um elenco muito mais do que essencial, porém, Enigma do Príncipe é um competente interlúdio para a guerra de verdade, sombria e alucinante, a ser assistida no fim da série. Por enquanto, é o bastante de Harry e sua turma. Até o ano que vem.

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